25 março 2006

Portugal está na moda: já comercializa os defuntos e a educação dos jovens

Os negócios estão no poder. «Os heróis da Renascença foram os pintores, os do século XVIII e XIX foram cientistas e filósofos, o século XX pertenceu aos intelectuais, os heróis do nosso tempo são os homens da finança, da indústria e do comércio», disse um rico empresário português.

Num tempo dominado pelos negócios fiquem sabendo que até a morte é «uma janela de oportunidade». Há sempre clientes. Neste ramo, quanto pior vai a vida, melhor o negócio. Fiquei a saber que por cá a parte mais lucrativa do negócio da morte já está nas mãos de multinacionais espanholas que por sua vez foram absorvidas por um grupo inglês controlado por duas grandes corporações americanas. Ao que consta os espanhóis estão no grupo porque têm mais «know-how» no ramo católico do que os americanos e ingleses que, por sua vez, são mais especializados nos ramos protestante e agnóstico. Aos portugueses restou a subcontratação. Se a morte deixou de ser um assunto privado para ser uma actividade lucrativa, dependente do mercado, também o futebol, como é sabido, deixou de ser desporto e virou indústria. A esta procura de oportunidades de negócio não podia escapar a educação. Os grupos financeiros, dos países do centro, em particular os americanos, canadianos, ingleses e afins, desde há alguns anos que descobriram este potencial económico. A educação, tal como a saúde e a morte, foram declaradas indústrias de enorme potencial e futuro. Ensaia-se, por todo o mundo, a melhor forma de tirar partido deste novo filão. O processo em curso de privatização da educação é um processo complexo. Está já bastante estudado. É um fenómeno global, mas assume formas diferenciadas de país para país. Não se resume à questão da propriedade da rede escolar. Há escolas de propriedade pública que têm processos privativistas muito avançados e há escolas de propriedade privada com uma prática privativista mais mitigada. Em suma, não se pense que a privatização da educação, nas sociedades actuais, continua a passar pela simples dualidade escola de propriedade pública, escola de propriedade privada. O termo «privatização» é uma designação de vários programas e políticas educativas. Genericamente, a privatização traduz-se na «transferência de actividades, provisão e responsabilidades do governo e das instituições e organizações públicas para indivíduos e organizações privadas». A privatização é assumida como «mercantilização» quando são criados novos mercados ou «quase-mercados» que proporcionam alternativas de mercado aos serviços do governo. Como se compreende para que exista privatização não é necessário alterar a propriedade das instituições. Basta alterar-lhes a forma de se organizarem e de funcionar. O sector da educação, dado o volume de despesa que acarreta, o potencial de lucro que encerra e a sua importância social crescente, é fortemente pressionado para ser privatizado, surgindo tal pressão de várias formas. Mas a resposta privatizadora é tanto maior quanto menor for a capacidade da escola pública, e dos seus sujeitos, em resolver problemas e manter a qualidade educativa. Por isso, a defesa da escola pública passa essencialmente pela capacidade de manter a despesa em níveis socialmente aceitáveis e, sobretudo, por encontrar inovação e capacidade de dar respostas de qualidade à nova população escolar e à nova procura educativa. Sem encontrar respostas comparativamente melhores dificilmente se escapará ao processo, em curso, de privatização da educação. Em suma, ou a organização pública responde melhor que a privada ou nada feito. Não é a simples denúncia de possíveis vícios privados que evitará o prosseguimento dos processos privativistas em desenvolvimento. Depois de serem submetidas a um bom trabalho de propaganda ideológica, as opiniões públicas vêem o sector da educação pública em estado de crise terminal. Criticamente desarmadas, estão preparadas para aceitar propostas que lhes acenem com um qualquer paraíso educativo. Nós vivemos hoje em sociedades do espectáculo. Espectáculo social, cultural mas também político. O espectáculo político é produzido em grande parte pelos interesses das grandes corporações financeiras, comerciais e industriais. «O espectáculo político constrói-se por meio da linguagem, imagens e discursos e através dos meios de comunicação como a televisão, cinema, internet, revistas, jornais, etc. (Edelman, 1988)». E constrói-se utilizando várias estratégias. Uma delas é a construção do sentimento de crise do sistema. Escondem-se interesses políticos e económicos por trás da aparência da racionalidade e da livre escolha. Criam-se inimigos e fantasmas. Define-se o público como espectador passivo em lugar de colectivo de cidadãos activos. Estes elementos estão patentes na preparação das reformas educativas dos últimos vinte anos e abrem caminho à ideia de que as soluções para os problemas com que se confronta a escola pública passam por processos de privatização da educação e da sua sujeição ao mercado.(1) Que a escola pública portuguesa tem enormes problemas, todos o reconhecemos. Que ela penaliza sobretudo os mais pobres, ninguém duvida. Que os problemas se não resolvem sem profundas mudanças da escola pública, todos o sabemos. Mas é duvidoso que a resolução destes problemas reais passe pelas diversas formas de privatização até agora ensaiadas.(2) Definir e compreender a realidade da crise da nossa escola (a crise da escola em cada país) é um passo fundamental. Se queremos apontar e participar na resolução dos problemas importa partir da análise critica da realidade, sem medos, sem preconceitos, sem conservadorismos, sem cálculos corporativos, sem sofismas, sem fantasmas, sem preguiça, colocando o interesse dos alunos em primeiríssimo lugar e recusando a aceitação acrítica da crise que nos querem vender. A construção ideológica da crise – por iniciativa dos poderes dominantes - foi feita afirmando a ideia de que a falta de competitividade económica do País, a «ausência de valores», a «violência», o insucesso e a exclusão, a apatia dos alunos ou a «proliferação de problemas sociais» se devem a um deficiente sistema educativo público. Mas a realidade mostra, paradoxalmente, que o papel social do sistema público de educação foi, desde o final dos anos 80, tendencialmente reduzido pelos poderes à simples produção de «capital humano» barato e de consumo imediato.(3) A análise das várias iniciativas de reforma privatizadora mostra que os alunos só, num caso ou noutro, e em termos retóricos, se encontram em primeiro lugar. Os processos de privatização, de facto, colocam outros interesses acima dos interesses dos jovens e das pessoas adultas. A defesa da escola pública passa, em primeiro lugar, por defender, de facto, em primeiríssimo lugar, os interesses da totalidade da comunidade dos alunos. É em nome dos alunos e de uma sociedade mais justa que se hão-de procurar as respostas para os problemas da escola pública e se mostrará como as respostas privatizadoras criam mais problemas do que resolvem.